Nove Noites... por Bernardo Carvalho
O que é fato e o que é ficção em “Nove Noites”?
Bernardo Carvalho: A indistinção entre fato e ficção faz parte do suspense do romance. Por isso não vejo sentido em dizer o que é real e o que não é. Isso tem a ver com meus outros livros. Também neles há um dispositivo labiríntico, em que o leitor vai se perdendo ao longo da narração. Nesse caso isso fica mais nítido porque existem referências a pessoas reais. Mas mesmo as partes em que elas aparecem podem ter sido inventadas. Em última instância, é tudo ficção.
Quando eu mostrei o livro à editora, eles ficaram apreensivos com a possibilidade de alguém me processar. Então consultaram um advogado. Ele leu o livro e disse que apenas uma pessoa poderia entrar na justiça contra mim. Mas esse perigo eu não corria, porque, de todas as que ele analisou, aquela era a única que tinha sido inventada. Foi aí que percebi que o livro estava funcionando como ficção.
Tem mais um ponto a esse respeito. Você nunca sabe se os índios estão inventando ou dizendo a verdade. Não dá para confiar em nada. O cara te diz uma coisa hoje, depois é outra completamente diferente. É uma forma de narrar estranha, você não sabe se ele está querendo agradar, se está dizendo aquilo só porque acha que você quer ouvir. O fato é que você nunca sabe onde está pisando. De certa maneira, esse livro é uma literatura à maneira dos índios, pois mantém essa dúvida para o leitor.
A idéia inicial era fazer uma biografia de Buell Quain?
Carvalho: Eu queria fazer um romance, não queria fazer um livro de jornalismo. Foi como se, retrospectivamente, a história de Buell Quain desse sentido ao que eu já tinha na cabeça. As coisas se encaixam. Conforme eu ia fazendo, percebia que talvez a história já estivesse pronta. Mas só tive certeza que seria ficção quando percebi que não encontraria a família dele. Ao longo do processo, porém, muitas cartas que eu tinha enviado começaram a ser respondidas. Então fiquei morrendo de medo: se a família aparecesse, ferrava com a minha história. Eu nunca tinha feito pesquisa desse jeito.
A maneira como os índios aparecem na história não é das mais abonadoras. Você não acha que a abordagem pode ser considerada leviana, principalmente para um livro que fala de temas ligados à antropologia?
Carvalho: Não tinha nada previsto em relação à antropologia. Até porque a relação com os índios faz parte do meu passado. Tem até uma espécie de mito na família ligado ao assunto, que é o Rondon, meu bisavô. Eu não considero a abordagem leviana. Deve ser leviana do ponto de vista de um antropólogo. Eu só não quero ser paternalista. Quero tratar o índio de igual para igual. E não tem nenhuma mentira com relação aos índios.
Se você for numa aldeia, vai ver a mesma coisa. Fico muito irritado com paternalismo. É curioso você se propor a fazer uma coisa científica, se propor a ter uma liberdade intelectual que, no limite, bate num aspecto moral que impede você de pensar. E eu acho que a relação cotidiana dos antropólogos com os índios costuma ser paternalista. É estranho se portar dessa maneira com relação a um objeto de estudo. Mas não é sempre assim. O Lévi-Strauss, por exemplo. Ele não tem nenhum tipo de paternalismo. Ele não gosta dos índios. Dá para ver que ele não tem amizade por eles, nem fica feliz em estar no meio do mato. Ele gosta é do estudo dele. E fica totalmente focado naquilo.
Agora, você cria uma certa afetividade com os índios. Não é que você não goste deles. Mas a própria relação que eles estabelecem com você impossibilita um aprofundamento. Meus amigos não são assim comigo. Eles não me pedem dinheiro todo dia. De fato, tem um problema sério. O índio é um cidadão de segunda classe no Brasil. Do ponto de vista político, é preciso lutar contra isso. Mas, na relação cotidiana, chega uma hora que dá no saco.
A relação entre o pai e esse narrador que por vezes parece indistinto do autor é central na narração. Você não se sentiu exposto por causa disso?
Carvalho: Quando eu entreguei o livro, as pessoas disseram que eu me expunha muito. Engraçado. Eu não me senti assim. Não acho confessional. Não me senti exposto em nada, me senti totalmente à vontade. De todos que escrevi, talvez esse seja o livro em que eu me sinto menos constrangido. Como se nesse tivesse menos verdade que nos outros. Os outros são mais eu do que “Nove Noites”. Tem também uma coisa que eu só percebi depois: o livro é sobre a paternidade.
Todo mundo está à procura de um pai. Os índios estão querendo um pai, pois de alguma maneira são órfãos da civilização. O Quain tinha uma relação complicadíssima com o pai, e ao mesmo tempo faz o papel de pai com os índios. O narrador, do mesmo modo, contrapõe a história do antropólogo com a do próprio pai. Tudo gira em torno da linhagem paternal. É curioso. É uma ficção que tem a ver com antropologia e que acaba sendo sobre as relações de parentesco.
“Nove Noites” tem uma linguagem mais simples do que seus outros livros. É uma mudança que deve vigorar?
Carvalho: Não diria. Eu gosto dos outros, eu gosto da frase labiríntica. O que eu acho é que, nos outros, é como se a linguagem estivesse à procura da história, ao passo que no “Nove Noites” a história está a priori. Por isso o livro parece mais um relato. A idéia era ele se aproximar do espírito de um livro de jornalismo. Mas apenas se aproximar. As partes em itálico, por exemplo. Muita gente veio me dizer que tinha achado lindos aqueles trechos. Quando na verdade eu nunca teria coragem de escrever daquele jeito. Acho brega. O personagem que escreve aquilo, o Manoel Perna, é um popular dos anos 40 tentando ser literato. Por isso a linguagem é floreada daquele jeito. Mas, no contexto geral, é verdade. Esse livro tem uma linguagem mais simples que os outros.
Não teve medo que esse beletrismo do Manoel Perna fosse confundido com um traço da sua escrita?
Carvalho: De jeito nenhum. Você coloca na boca de um outro personagem. Seria uma apreensão ridícula da literatura tomar a opinião de um personagem pela do autor. É o que os americanos fazem, com esse negócio do politicamente correto. Se eu incluo um sádico assassino no livro, eles acham que estou fazendo propaganda do sádico assassino. Quando no fundo essa é a graça da literatura, do romance.
Esse personagem, o Manoel Perna, é uma espécie de desejo do autor de resolver as lacunas que não são resolvidas pela pesquisa. Várias pistas me induziam a certas conclusões, mas eu não tinha certeza. Precisava de um negócio que fechasse. E a única pessoa que podia ter visto era ele. Por isso logo no início percebi que ele seria um dos narradores. No livro ele aparece como engenheiro. Na verdade, ele era barbeiro. Mas achei que ia ficar muito inverossímil, ele escrevendo daquele jeito empolado com essa profissão. Foi a única coisa que eu mudei com relação a ele.
Por que Buell Quain veio para o Brasil?
Carvalho: O Franz Boas, diretor do departamento de antropologia de Columbia, estava interessado no Brasil. Era um território muito rico etnologicamente falando. Tinha muita coisa a ser explorada. Foi um desafio para o Quain, mas totalmente inconsciente. Ele tinha acabado de voltar das ilhas Fiji. Então pintou a oportunidade e ele topou. Ele estava vindo para estudar os Karajá. Quando chegou, percebeu que tinha uma tribo mais interessante, que eram os Trumai. Mas ele se ferrou.
Foi contra tudo e contra todos, e acabou sendo obrigado a voltar. Acho que tinha um lado um pouco ingênuo dele também, um pouco National Geographic, um pouco Jim das Selvas, um cara do interior dos Estados Unidos que de repente se acha o máximo. O Brasil pegou ele de surpresa. Tanto que, numa carta escrita pouco antes de morrer, ele diz que o país é ótimo para a antropologia, mas que ele não quer ficar aqui de jeito nenhum.
O Quain tinha orgulho de ser americano e uma noção de superioridade em relação ao Brasil que era muito irritante. Por incrível que pareça, mesmo querendo estudar antropologia, no fundo ele se achava superior. Por outro lado, as críticas que ele faz ao provincianismo, ao atraso brasileiro, são muito pertinentes. De alguma maneira, acho que isso torna a personalidade dele mais complexa.
Mas não havia nele um lado meio desajustado também?
Carvalho: Sem dúvidas. Assim como os colegas dele que vieram para o Brasil na mesma época. Imagino que isso pode ter a ver com a Ruth Benedict, que era orientadora do trabalho deles. Ela era gay. Era uma pessoa que não estava no eixo da cultura americana. E eu não sei se isso era intencional ou não, mas as pessoas que se reuniam em torno dela eram pessoas que saíam da linha.
A Ruth Landes, por exemplo, que estava na Bahia naquela época e se correspondia com o Quain. Ela era uma judia de Nova York que gostava de transar com negros. Uma judia de Nova York transar com negros nos anos 30 era um absurdo. Antes de estudar antropologia, ela morou um tempo no Harlem. Só depois resolveu vir à Bahia estudar candomblé.
E a produção intelectual dele, é importante?
Carvalho: Eu não entendo nada de antropologia. Mas os textos que ele escreveu me parecem um pouco impressionistas. Eu não sei se antropologia se faz assim. Dá um pouco de aflição, parece que está faltando alguma coisa. São apenas notas que ele tomou. Não sei se ele iria muito adiante. O Lévi-Strauss diz que ele poderia ter sido um grande antropólogo. Não sei. Mesmo os textos sobre Fiji, onde ele esteve pouco antes de vir ao Brasil, são totalmente descritivos. Não têm nenhuma idéia, nenhuma abordagem mais profunda. De repente, etnologia é isso.
O Lévi-Strauss ficou com um carinho especial pelo Quain. Sempre que ele tem oportunidade de citar, ele cita. E não haveria por que fazer isso, pois o Quain não tem nenhuma produção importante. Há um “parti pris” dele a favor do Quain, que deve ter surgido quando os dois se encontraram brevemente em Cuiabá.
Até pouco tempo atrás você assinava uma coluna de crítica literária na “Folha de S. Paulo”. Por que desistiu?
Carvalho: Por duas razões: escrever sobre livros estava atrapalhando o meu trabalho literário. Achei que estava interferindo no meu texto. Isso é completamente subjetivo. Pode ser que não tenha nada a ver, mas me incomodou. Mas o principal não é isso, e sim que percebi que eu estava entrando na vida literária. Eu era um ponto de referência.
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